Ambos foram extraídos da internet e os links podem ser conferidos ao final da página.
(O poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, já tinha sido publicado anteriormente neste blog: para lê-lo, clique aqui.)
Procura da poesia
Carlos Drummond de Andrade
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Super Flumina Babylonis
Jorge de Sena
É que os gênios não têm, não precisam de ter biografia.
Latino Coelho, Luís de Camões, Lisboa (1880)
A ascensão da estreita escada escura, e tão a pino, com os
degraus muito altos e cambaios, era, sempre que voltava a casa, uma tortura. À
força de equilíbrios, meio encostado à parede, cuja cal já se esvaíra havia
muito e até nas suas costas, e apoiando em viés uma das muletas no extremo
oposto do degrau de cima, ia subindo cuidadosamente, num resfolegar de raiva
pela lentidão. Toda a unção adquirida na conversa com os frades de S. Domingos,
a cujas preleções regularmente assistia, ficando depois a discretear com eles,
se perdia naquele regresso a casa, ao fim da tarde, e mal se recompunha no
repouso à janela, sentado no banquinho baixo, comido o caldo, e ruminando
memórias e tristezas, enquanto a velha mãe prosseguia intermináveis arrumos
pontuados de começos de conversa, a que respondia com sorrisos e distraídos
monossílabos ou com frases secas em que ripostava mais a si próprio que a ela
mesma. Às vezes, ela insistia, repetindo um comentário, por uma resposta sua.
Mas mesmo essa insistência não significava comunicação efetiva: ela apenas
pretendia tranquilizar a própria consciência e o seu dó do filho envelhecido e
doente, que a vida destruíra, com algumas palavras que lhe dirigisse, simulando
uma conversa que não o deixasse entregue, perigosamente, aos solitários
pensamentos, onde é sabido que o Inimigo especialmente se insinua. E não era
dos pensamentos que ele tinha medo, mas dos vazios cada vez maiores que, entre
os pensamentos, se faziam. Quando ela lhe falava, e sobretudo quando ela
insistia, precisava não se deixar distrair pelas palavras que ouvia: ou logo,
no fio interrompido das ideias que continuamente deslizavam como um rio
revolto, se abria um vácuo tenebroso, um vórtice sombrio em que flutuavam
farrapos de versos e de coisas vistas, e, mais no fundo, como que uma pequenina
porta iluminada, ou um vidro posto sobre estranhas águas em que nadavam
esquisitos seres, e que parecia um olho fito nele, pestanejando ou palpitando,
não sabia bem, talvez que, sim, nem mesmo um olho, mas uma transparência marinha
como os reflexos das ondas ao luar. A pequenina porta, que lhe fazia vertigens,
nem sempre se mostrava. Na maior parte das vezes não havia mais que o poço em
que se debruçava, ansioso de que a portinha se abrisse e tremente até ao
arrepio pela frialdade que dela vinha. Fechando os olhos, cerrando-os com
bastante força, conseguia então afugentar aquelas visões» ou aquela visão,
sempre a mesma, que sonhava acordado. Porque dos sonhos tinha ódio. Pensar,
devanear, lembrar, imaginar, mesmo supor como tudo poderia ter sido numa vida
triunfante e num outro mundo, não era sonho, mas a certeza de que existia, de
que as coisas se arrumavam por sua vontade, que a ordem delas e do Mundo era um
desconcerto que ele organizava mentalmente. Quando dormia, não sonhava nunca.
Não eram sonhos as coisas que então via, mas a continuação do mesmo poder e da
mesma certeza, ou então tentações do demônio, como diziam os padres. Mas as
tentações ele conhecia bem.. Não eram tentações da sua alma que Deus não
deixaria que se perdesse nunca, a não ser naquele vórtice estranho onde parecia
que Ele não penetrava. Como tentações? Que tentação era ter nos braços uma
mulher que lhe escapara? Que tentação era matar, dormindo, um inimigo poderoso
e inacessível? Que tentação era ver-se feliz num palácio, rico, respeitado,
rodeado de servos e de admiradores, com uma mesa farta de bons petiscos e de
bons vinhos, e com saúde e vigor para uns jogos de armas ou para uma bela
amante pescada na rua, todos os dias uma diferente? Que tentação ver-se na
Corte, com bom gibão de veludo e a gola de finas rendas, ouvindo os elogios dos
seus pares, e recitando ou lendo o último poema escrito? Não eram tentações
estas coisas, não, mas consolações piedosas da sua alma, a satisfação do que
lhe fugira, a plenitude do que não tivera, a saciedade do que não bastara, a
conquista do que jamais pudera ter sido seu. Pecado é sonhar com o futuro:
desejar a mulher que se viu neste instante, querer com fúria o que é dado a
outros, invejar furiosamente, como coisa que nos foi roubada, a felicidade
alheia que está dançando, sem vergonha e sem respeito pela nossa miséria,
diante dos nossos olhos que param a vê-la. Mas imaginar-se feliz no passado,
com aquilo que fugidiamente o perpassara, e não fora nunca do tamanho da sua
fome, não era tentação, não era um pecado, era, sim, a sua única riqueza, a sua
única razão de esperar a morte, seco de amor, exangue de entusiasmos, descrente
da pátria, destituído até da alegria de fazer versos. Os seus versos, agora,
haviam-no abandonado. Haviam-se desfeito, como açúcar, no rio ininterrupto do
pensamento, aonde antigamente flutuavam de súbito, como pedaços de ardente
gelo, que um a um se atrelavam para dar um poema. E não tinha deles saudade
alguma. Não fora nunca para si próprio que os escrevera. Para os outros, sim.
Para que o ouvissem, para que o admirassem, para que o entendessem, para que
vissem como tudo, na vida, tinha um sentido exato que só ele era capaz de
achar, uma arquitetura que não teria tido sem ele, uma beleza que não existe
senão como a ideia que primeiro é pensada por quem é digno dela.
Empurrou a porta, e entrou. Contra o costume, a mãe não lhe
apareceu, nem ele sentiu na casa ruído algum. Fechou a porta, foi até à mesa, e
sentou-se na cadeira, encostando as muletas. Sentar-se era um alívio do
cansaço, e uma nova tortura também. Mas a ausência da mãe, tão inabitual,
tornou menos tortura a tortura de sentar-se ajeitando as partes inchadas e
doloridas, ato que, com uma vergonha infinita, era obrigado a fazer diante dela,
e que por isso não ajeitava bem, sentindo os olhos da velhinha fitos nele,
horrorizados com a monstruosidade dos castigos reservados a quem se entrega aos
pecados da carne, sem se manter puro como veio ao mundo. Ela, que, quando o
marido voltava de uma viagem, só deixava que ele a beijasse depois de ter a
certeza que não havia desembarcado em porto algum, desde muitos meses…
Suspirando, sorriu para si mesmo. Na primeira viagem que fizera, ao embarcar-se
para a Índia, ainda derrancado das orgias de noites consecutivas, destinadas a
prevenir-se para tanto tempo de céu e mar e de conversa de homens, ele…
Benzeu-se. Estas memórias eram tentações da carne. E nisso estava a diferença
da poesia que escrevera na vida. Umas vezes escrevera na verdade para saber o que
pensava. Mas outras vezes escrevera para possuir efetivamente, como, quando
era moço, repetia de seguida o ato do amor, não porque desejasse, mas para
sentir melhor que possuía, para ter a certeza de que possuía mesmo a marafona
de que se esquecera durante a primeira vez. Agora, assim alquebrado e
impotente, tudo o que pensava, se o escrevesse, lhe parecia que era só desta
poesia que pecava contra o Santo Espírito, e que não era uma dádiva, uma oferta
do seu corpo ao corpo em que entrava, mas uma rapina, uma avareza, uma maneira
de devorar o próximo. E mesmo de tudo o que escrevera lhe parecia incerto que o
tivesse sido abnegadamente, já que sempre ansiara pelo reconhecimento alheio,
pelo triunfo, pela glória, pelos prêmios, a ponto de contentar-se com o sorriso
constrangido dos ignorantes a quem lia os poemas.
Levantou o olhar para a janela. No prédio fronteiro, viu o
calafate sentado à mesa, que o observava amigavelmente por cima da escudela
fumegante. Acenou-lhe de cabeça, e o outro fez com a mão um gesto largo, que
terminou apontando o caldo numa oferta gentil. Correspondeu com um gesto como
que de adeus, e desviou a vista. À varanda vieram encostar-se as duas crianças;
não precisava de fitar Para saber. Nunca gostara de crianças, nunca pensara em tomar
estado para tê-las suas. Talvez por isso mesmo é que tanto ou tudo da sua
poesia ficara como aqueles filhos que não quisemos ter, e que depois se
despegam de nós adivinhando um desapego de que nos arrependemos, mas que não
deixa de ser um desapego mesmo arrependido. O amor para ele fora carne e
espírito, tão carne, que nenhum espírito podia estar presente, e tão espírito,
que nem toda a carne do mundo, usada dia e noite, chegava para contentá-lo. Até
o fastio, que às vezes o afastava longamente de contatos carnais, era uma
ardência insatisfeita, que se continha, suspensa e ameaçadora, à espera de
esquecer que a carne era sempre igual, e os gestos do amor tão poucos que os
sabia já de cor. Mas depois, ao fazê-los, era sempre, como na primeira vez, uma
surpresa, uma ignorância curiosa, um receio tímido, uma insegurança doce, um
pasmo juvenil, uma alegria nova, um encantamento frenético; era como na
primeira iniciação, mas sem a perplexidade e a decepção de o amor não ser mais
do que isso, quando a virtude do amor não está em ser mais do que é, mas em ser
o prazer de não ser isso mesmo.
Novamente ergueu os olhos para a varanda fronteira. As
crianças não estavam lá, e o homem, curvado para a escudela, comia o seu caldo.
Aquele mistério da Encarnação, o frade hoje falara muito bem, explicando com
eloquência o seu sentido. Mas o sentido da Encarnação não precisava ele que lho
explicassem. Quem amara com a carne e com o pensamento como ele, quem escrevera
do Amor como ele escrevera, e quem não gostara nunca de crianças, como ele,
tinha da Encarnação uma experiência que o frade não tinha. Precisamente porque
tudo se encarnara nele sem encarnar-se, e lhe devorara a própria carne,
deixando-o aquele farrapo imundo que era agora, quem melhor sabia o que era a
Encarnação? Ou, pelo menos, tanto quanto um homem pode sabê-lo? Sentir-se
grávido de um poema, sentir-se fecundado por um relâmpago entrevisto, e ser um
homem — é o mais que pode saber-se. Não o sabe a mulher que dá à luz, porque é
delas dar à luz, às vezes sem ter amado. Não o sabe o homem que quer ter
filhos, porque os pode fazer sem amor. Mas o poeta que praticou o amor até à
destruição da carne, e escreveu poemas até que o espírito acha pouco a poesia,
esse, sim, esse sabe o que Encarnação seja. Apenas, porém, o sabe. Mas não
viveu a Encarnação, foi a Encarnação quem o viveu a ele. E é este o grande
mistério, não o outro. E é a grande diferença entre um deus que se encarna, e o
homem em quem a Encarnação se representa. Uma diferença que é, afinal, uma
comédia, ou pode ser vista como uma comédia, porque todo o homem a quem isso
aconteça é Anfitrião, um marido enga¬nado pelo Júpiter que há nele.
Ficou vendo diante de si o palco iluminado, e as figuras
declamando os versos. A porta rangeu, e os passinhos leves soaram atrás dele. A
voz fininha e aguda começou a sua declamação desafinada.
— Esteve hoje cá o Padre Manuel à tua procura, e eu
disse-lhe que hoje era dia de ires a São Domingos, e ele disse-me que não se
tinha lembrado, e eu perguntei-lhe quando voltava, e ele respondeu que
precisava perguntar-te do teu livro, mas não era pressa, voltava noutro dia, ou
tu fosses procurá-lo amanhã ou depois. Que é que ele anda a fazer com o teu
livro, sempre a perguntar-te coisas? Então um livro desses, que não é de coisas
de Deus Nosso Senhor e da nossa santa religião, precisa que tu estejas sempre a
explicar o que é isto e o que é aquilo, e a contar a tua vida, nem que ele
fosse o teu evangelista? A Virgem Santíssima me perdoe, mas parece-me um grande
pecado. E contar a vida às outras pessoas é um grande pecado da vaidade. A vida
conta-se ao padre confessor, e faz-se a penitência que ele manda pelas nossas
más palavras e obras, e pronto. E, à hora da morte, a gente conta o que ainda
lembra ou fez entretanto, e o padre dá a absolvição, se fomos virtuosos e
piedosos, e nunca faltamos aos nossos deveres para com Deus e a sua Igreja. Ah,
veio também o criado do Senhor Rui Dias, do mando deste senhor, que tão teu
amigo é, perguntar pela encomenda que te fez daquelas poesias del-rei David que
Deus haja. E eu disse que tu ainda não acabaste e que logo acabas, e que tens
trabalhado muito e até tens estudado com o Padre Manuel para que as palavras
santas fiquem todas certas e nos seus lugares. E ele disse que o amo estava
muito arreliado contigo, que havia mais que muitos meses que tinha feito a
encomenda, e que tu não fazias nada, e que já tinha pago adiantado uma parte do
trabalho. E eu disse que era verdade, que ele já tinha pago, mas que nestas
coisas pagar adiantado alguma coisa é como dar o pano ao alfaiate, porque o
alfaiate não pode fazer o gibão sem o pano, e tu não podias escrever sem comer.
E disse-lhe que a tua tença estava atrasada e que não a pagavam, e que eu
esperava muito da bondade do seu amo e do grande poder que lá tem no Paço que a
tença fosse paga em dia, que bem a tinhas merecido de Sua Alteza pelos muitos
serviços de teu pai que Deus tenha em descanso, e também pelos teus serviços,
que se tinhas sido um rapaz sem juízo, e não tiveste sorte na vida, também eras
um homem que escrevia livros, e sabias muitas coisas divinas e humanas, como o
Senhor Padre Manuel me disse, e Frei Bartolomeu escreveu na licença que te deu…
— Frei Bartolomeu só disse que eu sabia muito de coisas
humanas.
— Pois é. Porque saber de coisas divinas tu podias ter
aprendido se tivesses estudado a valer, e tido juízo, que podias hoje até ser
bispo e mais do que eles dois. Mas meteste-te com más mulheres e más
companhias, e hoje é isso que se vê, e, em vez de seres tu a dar as licenças,
és tu quem as vai pedir a eles. Se não fossem teus amigos e tu não lhes moesses
a paciência, e não mostrasses como és um homem arrependido da má vida que teve,
não ta davam, que isto de frades, Nossa Senhora me perdoe, se alguém me ouve. O
teu pai é que se ria deles, e dizia que eram todos uns vadios, que só queriam
comer e ter as mulheres dos outros. Abrenúncio, e por isso Deus o castigou com
aquela desgraçada morte, que nem teve sepultura cristã. Mas tu podias ir
procurar o Senhor Duque ou o Senhor D. Manuel, e lembrar-lhes que a tua tença
está atrasada, e eles não há que não consigam, de tão grandes senhores que são,
primos del-rei. Eu tive de sair para visitar a nossa comadre Joaquina que está
outra vez com a sua dor e não tem ninguém que cuide dela, mas logo lhe disse
que não podia demorar-me, porque hoje era dia de ires a São Domingos santificar
a alma, que bem precisas, e logo voltavas com fome e querias a tua ceia, e
ficavas aborrecido se eu não estivesse em casa quando chegasses, para te dar o
caldo, e ela respondeu que não eras nenhuma criança que chorasse pelo peito da
mãe, e eu disse-lhe que tu nunca tinhas chorado pelo peito da tua mãe, e é
verdade também porque eu te dava logo de mamar mal tu abrias a boca para
gritar. Mas que nunca choraste para mamar é a verdade, e só choravas depois,
porque o meu leite era fraco e foi preciso trazer uma ama, e o teu pai queria
que tu fosses criado com ama, porque não era da nossa condição que tu fosses
criado ao peito de uma senhora como eu, esposa de um homem como ele, tudo gente
de condição. Mas a condição que nós tínhamos era só o que ele ganhava, e Deus
sabe como eu vivi depois que teu pai faltou e tu andavas lá por essas terras de
gentios e de infiéis, por tanto tempo e eu sem saber se eras vivo ou morto, e
só sabia quando chegavam as armadas e vinha alguém conhecido que me dava
notícias tuas, e me dizia que tu tinhas ido para aqui e para ali, ou estavas
não sei onde, que para mim todas aquelas Índias são o mesmo, e os nomes das
terras são mesmo coisa do demônio, cruzes, de arrenegados para se entenderem.
Muitas vezes eu pensava que me escrevias, mas tu nunca escrevias, e muitas
pessoas me diziam que tu lá escrevias as cartas dos outros, que escrever bem tu
sempre escreveste desde muito pequeno] mas punhas as coisas bonitas no papel
para eles, e para mim nada. E eu ficava rezando a Sant’Ana e a Nossa Senhora e
às vezes até mudava de santo para que nenhum se cansasse de me ouvir, sempre
temendo que morresses nas guerras e nos naufrágios, ou dessas doenças que há
lá, e a pensar que às vezes eu podia estar a rezar pela tua boa sorte e as
rezas afinal servirem para te descontar os dias de Purgatório pelos teus
pecados e leviandades, e o corpo que eu dei à luz estar comido dos peixes ou do
gentio, sem sepultura cristã, como teu pobre pai que Deus haja e eu só soube
tanto tempo depois. E a comadre Joaquina deu-me este pastel que aqui trago e
que é de uma galinha que lhe deu a vizinha, ou uma meia galinha só, de que ela
fez este pastel, e me disse que tinha outro e que te mandava este, mas queria
que tu lhes escrevesses uma oração em verso a S. Crispim de que é muito devota,
e eu disse que tu havias de escrever depois de comeres o pastel.
— Eu como o pastel, mas versos aos santos não faço.
— Deus meu, se alguém te ouve e pensa que tu não acreditas
nos santos. A Santa Inquisição que nos livrou da maldade e da malícia dos
inimigos da nossa Fé manda que se acredite nos santos, e eu bem sei que tu não
acreditas, nunca te encomendas a eles, e é por pecado de orgulho, ao que me
disse o Padre Manuel, quando eu lhe falei da minha aflição por tu não
acreditares nos santos, e ele me respondeu que tu achas os santos pequenos de
mais para ti, e não te contentas senão com Deus Nosso Senhor. Eu até fiquei
arrepiada de pensar no perigo que é não ter um santo que nos proteja. Se não
fossem o Senhor Duque e o Senhor D. Manuel e o Senhor Rui Dias e outros
senhores assim, eu queria ver de que é que tu vivias, que el-rei nem saberia da
tua existência. Deus me perdoe, mas não é que Deus não saiba de ti, porque ele
sabe de todos nós e é um pai amantíssimo que não tira os olhos de nós. Mas
está na sua divina majestade, ocupado em reger o Mundo, e nunca ninguém ganhou
causas sem advogado. A mim a Senhora Sant’Ana nunca me desampara, eu nem sei o
que seria de mim e de ti sem ela. Que este pastel é um milagre dela. Quando eu
saí para visitar a comadre Joaquina, ia dizendo comigo que a Senhora Sant’Ana
fizesse que eu não voltasse para casa com as mãos vazias e trouxesse algum
petisco para o meu filho, e pedi mesmo um pastel de galinha, que era o mais
certo, porque a comadre Joaquina sempre tem pastéis de galinha. E eu não
prometi à Senhora Sant’Ana que tu farias o que a comadre pedisse, porque já te
conheço, e não há contar contigo para coisa nenhuma que não seja comer o
pastel. E por isso não faz mal que não faças os versos a S. Crispim, porque não
foi promessa minha. A comadre é que disse que tu, se quisesses, podias fazer,
que toda a gente dizia que eras muito bom dizedor, e que fazias logo os versos
que te pediam. E eu respondi que isso seria dantes, porque agora tinhas uma
encomenda muito boa, de grande rendimento, do Senhor Rui Dias, que nos fazia a
honra de ser teu amigo, de pôr em verso os Salmos del-rei David que Deus haja,
e que tu não escrevias nada, e até hoje o criado dele cá estivera a reclamar
por causa do pagamento adiantado. Tu estás a dormir, tu não ouves o que eu
digo? Come o teu caldo enquanto está quente e depois o pastel que é bem gostoso
se for igual ao outro que a comadre tinha. Eu já ceei em casa dela, e estou sem
apetite só de ver-te nesse estado, um rapaz tão forte e tão bonito como tu
eras, que não havia moça que não se voltasse para te ver, nem homem que não se
mordesse de inveja. E, quando o sol dava no teu cabelo, eu dizia comigo que o meu
filho era como um rei com a coroa na cabeça, ou, Deus me perdoe, como um grande
santo de resplendor dourado em dia de procissão. E ficava a ver-te ir pela rua
abaixo, tão vaidoso que nem olhavas para trás, com a mão no punho da espada, e
os passos tão firmes, Deus meu, que parecia que a terra era toda tua. Por essas
e por outras é que as tuas desgraças começaram, com as arruaças e as brigas, e
o mau feito, desgraça maior que todas, de acutilares o homem em Dia de Corpus
Christi, aquele patife sem vergonha que te desgraçou e fez ir para a Índia e
que merecia morrer em pecado, Deus me perdoe se sou eu quem peca. Está tão
escuro já que vou acender a candeia. Mas o lume apagou-se e vou descer à
vizinha a pedir-lhe lume. Deus Nosso Senhor tenha piedade de mim, velha e
cansada, e com um filho homem, e sou eu quem tem de descer a escada para buscar
o fogo que não há na minha casa. Abriu o olhar às trevas e ao silêncio.
Conhecia tão bem os cantos da quadra, que era como se estivesse vendo a arca e
o oratório com o raminho entalado, os quadrinhos de santos pendurados, a
prateleira com os pratos em pé, a enxerga ao canto, onde ele dormia, a porta da
alcova de sua mãe e a porta da cozinha. Via tudo com a mesma certeza e a mesma
minúcia com que vira as naus do Gama navegando no mar, lá em baixo, vistas do
Empíreo, com que vira Vénus abraçada a Júpiter e chorando, com que vira o
Adamastor sair da nuvem grossa, com que vira o Veloso correndo pelo monte
abaixo. Mas ele acutilara o Borges, porquê? Para que a vida lhe mudasse de
rumo, para que ela tomasse um rumo de fatalidade, para que as índias lhe fossem
impostas pela sua estrela, para que a sua estrela existisse. Erros meus, má
fortuna, amor ardente, em minha perdição se conjuraram, os erros e a fortuna
sobejaram, que para mim bastava amor somente. Perdição. Amor somente. Como a
poesia é falsa e verdadeira. Como ela diz não dizendo, e é não dizendo que diz.
Como da nossa alma não sabemos nada antes de escrevê-la, e como não é dela que
sabemos depois de ter escrito. A perdição procura-se, como um homem se despe
para banhar–se no mar, a modos que Leandro atravessando o Helesponto. E o amor
somente bastaria, como o momento em que tudo se esquece, tudo desaparece, tudo
se evapora, ao calor que abrasa e que só dura um instante mas um instante em
que o tempo se suspende, se petrifica num espaço e numa forma, e todo o
verdadeiro espaço foge velozmente, correndo pelos tempos fora até que é ele o
tempo que se suspendeu. Apenas como isso, porque é uma imagem do supremo amor,
aquele que existe além do tempo e do espaço, além das esferas, além daquele
poço terrível. Além ou aquém? E se esse amor não fosse mais do que uma imagem,
uma essência última da sua própria vida?
Estranhamente, no silêncio e no fluxo dos pensamentos, o
poço abriu-se insólito e translúcido na sua profundeza negra, com as pequeninas
formas flutuantes, e uma subia, subia, tomando cor e feições de uma medusa
terrífica. Mas a porta rangeu, e uma vaga claridade fez emergirem os objetos,
como formas planas, sem sombras na luz fraca. Os passinhos soaram leves.
— A vizinha diz que, no intervalo antes de tu chegares,
quando eu já tinha saído, veio cá também aquele doutor que te pediu as poesias
para aquele senhor que não tem nome cristão, o Senhor D. Leonis. Hoje veio cá
todo o mundo, até parece o Dia de Juízo. E ele que vai de viagem ficou com
muita pena de não te ver, e disse-lhe que te deixava muitas lembranças e que
queria muito que tu melhorasses de saúde, e ela respondeu que tu estavas mesmo
muito acabado, e ele disse que tu não acabavas nunca, porque tu eras um grande
poeta, um dos maiores que já tinha havido no mundo, assim uma coisa como nem
sei quem ele disse. E ela riu-se muito, e disse-lhe que o Senhor Padre Manuel
também dizia o mesmo, e que era tudo bondade deles, porque isso de poesias
nunca davam nada a ninguém. Só que a ti deram a tença, mas foi por causa do
livro impresso e pelos muitos serviços a el-rei que o teu pai prestou em sua
pobre vida, e tu também. E ele respondeu que era sempre assim que as coisas aconteciam,
que a glória só vinha muito tarde, e que os prêmios, quando eram dados, nunca
vinham pelo que a gente merecia mais. Eu acho que isto é descrer da infinita
bondade de Deus Nosso Senhor, e não é muito respeitoso para com Sua Alteza que
te deu a tença. O que é preciso é que tu vás ao Paço reclamar que não te pagam
a tempo e horas, que estou cansada de me arrastar até lá, e sempre me perguntam
porque tu não vais, e o outro dia o tesoureiro até me disse que era tudo
história, que não ias porque tinhas morrido, e eu, se queria receber, tinha de
pedir a el-rei a tença em meu nome. E tu não vais porque tens esse pecado de
orgulho, e não queres que te vejam de muletas, a pedir que te paguem o que te
devem. Eu é que estou cansada, e vou-me deitar que não posso mais comigo. Tem
cuidado com a candeia, não gastes muito azeite, que está pela hora da morte, e
bem sabes que tenho medo dos fogos e podes adormecer aí na mesa, não era a
primeira vez, e a candeia pegar fogo à tua papelada, e à casa, Deus nos acuda e
Santa Bárbara nos proteja. Se voltar cá o criado do Senhor Rui Dias, o que é
que lhe digo? Nem me respondes, estás a cair de sono em cima da mesa. Tem
cuidado com a candeia… Ficou olhando as chispinhas delicadas que a candeia
fazia, como uma auréola à volta de um centro ardente. Se o criado de Rui Dias
lhe aparecesse, ou ele mesmo, diria que, noutro tempo, era mancebo, farto e
namorado, querido e estimado, e cheio de muitos favores e mercês de amigos e
damas, com que o calor poético se aumentava, e que agora não tinha espírito nem
contentamento para nada… Seriam 365 versos, tantos quantos os dias do ano, como
uma via sacra da vida, 73 quintilhas como…
Levantou-se impelido por uma ânsia que lhe cortava a
respiração, uma tontura que multiplicava a pequenina luz da candeia. Apoiado à
mesa, arrastou-se até à outra ponta, e daí deixou-se cair até à enxerga.
Remexendo nela, tirou de um canto umas folhas de papel, o tinteirinho, com a
pena enfiada no anel, que se habituara, desde o primeiro embarque, a guardar
assim. De joelhos, com as dores neles e nas partes aumentando muito agudas e em
picadas de que cerrava os dentes, veio até à mesa, pousou nela o que trazia, e
levantou-se. Ficou um momento, de olhos fechados, arquejando. Já as palavras
tumultuavam nele, confundidas com as outras, inúteis e mortas, da tradução que
tentara. Eram como uma tremura que o percorria todo de arrepios, com
hesitações leves, concentrando-se em pequenas zonas da pele. Debruçando-se da
mesa a que se apoiava, puxou para o seu lado a cadeira, e caiu sentado nela.
Sentia um suor frio escorrer-lhe pela testa, e, ao abrir o tinteiro, viu que as
costas das mãos brilhavam perladas. Uma onda de alegria o inundou, em sacões
ansiosos. Os olhos ardiam-lhe e era de lágrimas. Tudo falhara, tudo, e a própria
poesia o abandonara, receosa dos seus olhos de alma penetrantes que viam o
fundo das coisas. O poço com as formas flutuando. Mas era um grande poeta,
transformava em poesia tudo o que tocava, mesmo a miséria, mesmo a amargura,
mesmo o abandono da poesia. Tremendo todo, mas, com a mão muito firme, começou
a escrever… Sobre os rios que vão de Babilônia a Sião assentado me achei…
Riscou, desesperado. Recomeçou. Sobre os rios que vão por Babilônia me achei
onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…
E ficou escrevendo pela noite adiante.
Araraquara, 27 de Março de 1964.
O poema Procura da poesia foi extraído da página poesiapoemaseversos.com.br.
O conto Super Flumina Babylonis foi extraído da página Ler Jorge de Sena, que traz também uma versão em áudio lida por Nuno Meireles. Foram feitas algumas modificações ortográficas no texto.