Obrigado a todos que fizeram parte desta história!
Este é o blog do Curso de Produção Literária, oferecido desde 2011 pelo Núcleo de Formação da Casa da Cultura "Luiz Antônio Martinez Corrêa", da Secretaria Municipal de Cultura de Araraquara.
20 de mar. de 2014
Retrospectiva
Assista ao vídeo Retrospectiva da Produção Literária, apresentado na aula inaugural de 2014 (2ª 10/03):
12 de mar. de 2014
Aula 02. Palavra-puxa-palavra
Continuando aqui a aula 02.: penetra surdamente no reino das palavras…, dizia Carlos Drummond de Andrade; …palavra puxa palavra, uma ideia traz outra…, Machado de Assis; vejamos então o que Luís Fernando Veríssimo tem para contribuir com aquela nossa discussão:
Defenestração
Luís Fernando Veríssimo
O analista de Bagé
(1981)
Novaes |
Certas palavras têm o
significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa
vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas
variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser
o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se
complicaria.
– Os hermeneutas estão
chegando!
– lh, agora é que
ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas
ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus
enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela
confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio.
Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
– Alô…
– O que é que você quer
dizer com isso?
Traquinagem devia ser
uma peça mecânica.
– Vamos ter que trocar
a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o
barulho que um corpo faz ao cair na água. Mas nenhuma palavra me fascinava
tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não
sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e
imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas
pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam
sussufrar no ouvido das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um
tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam. Também podia ser algo
contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa.
Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas
misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede
defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma
ou outra vez, como em:
– Aquele é um
defenestrado.
Dando a entender que
era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra
exata.
Um dia, finalmente,
procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração”
vem do francês defenestration. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou
algo pela janela!
Acabou a minha
ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e
lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu
saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou
escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito
francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as
drogas, suprimido a tempo.
– Les defenestrations. Devem ser proibidas.
– Sim; monsieur le Ministre.
– São um escândalo
nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
– Sim, monsieur le Ministre.
– Com prédios de três,
quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime.
Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os
transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês
de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs.
E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste
na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
– É esta estranha
vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
– Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala
Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista,
afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca
sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi
inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com
suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação
inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa
suite matrimonial no 17º andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que eu
preciso lhe dizer…
– Fala, amor.
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua
inocência, caminha para a cama:
– Estou pronta para
experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca o homem que acaba de cair
na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:
– Coitado. E depois
ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma
estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta
crônica. Se ela sair é porque resisti.
E para quem gostou do quadro da demonstração da proposta de exercício, aí vai:
Vincent van Gogh, Quarto em Arles - 3ª versão (1889) |
Tanto a crônica quanto as imagens foram extraídas da internet.
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