12 de mar. de 2014

Aula 02. Palavra-puxa-palavra

Continuando aqui a aula 02.: penetra surdamente no reino das palavras…, dizia Carlos Drummond de Andrade; …palavra puxa palavra, uma ideia traz outra…, Machado de Assis; vejamos então o que Luís Fernando Veríssimo tem para contribuir com aquela nossa discussão:


Defenestração
Luís Fernando Veríssimo 
O analista de Bagé (1981)

Novaes
Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.

Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.

– Os hermeneutas estão chegando!

– lh, agora é que ninguém vai entender mais nada…

Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.

– Alô…

– O que é que você quer dizer com isso?

Traquinagem devia ser uma peça mecânica.

– Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.

Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água. Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussufrar no ouvido das mulheres:

– Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam. Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:

– Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.

Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês defenestration. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela!

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.

Les defenestrations. Devem ser proibidas.

– Sim; monsieur le Ministre.

– São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

– Sim, monsieur le Ministre.

– Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.

– É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…

– Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no 17º andar.

– Querida…

– Mmmm?

– Há uma coisa que eu preciso lhe dizer…

– Fala, amor.

– Sou um defenestrador.

E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:

– Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:

– Fui defenestrado…

Alguém comenta:

– Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!


Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.









E para quem gostou do quadro da demonstração da proposta de exercício, aí vai:

Vincent van Gogh, Quarto em Arles - 3ª versão (1889)



Tanto a crônica quanto as imagens foram extraídas da internet.

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