Continuando aqui a aula 02.: penetra surdamente no reino das palavras…, dizia Carlos Drummond de Andrade; …palavra puxa palavra, uma ideia traz outra…, Machado de Assis; vejamos então o que Luís Fernando Veríssimo tem para contribuir com aquela nossa discussão:
Defenestração
Luís Fernando Veríssimo
O analista de Bagé
(1981)
Novaes |
Certas palavras têm o
significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa
vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas
variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser
o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se
complicaria.
– Os hermeneutas estão
chegando!
– lh, agora é que
ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas
ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus
enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela
confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio.
Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
– Alô…
– O que é que você quer
dizer com isso?
Traquinagem devia ser
uma peça mecânica.
– Vamos ter que trocar
a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o
barulho que um corpo faz ao cair na água. Mas nenhuma palavra me fascinava
tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não
sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e
imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas
pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam
sussufrar no ouvido das mulheres:
– Defenestras?
A resposta seria um
tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam. Também podia ser algo
contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa.
Haveria, assim, defenestradores profissionais. Ou quem sabe seria uma daquelas
misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede
defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma
ou outra vez, como em:
– Aquele é um
defenestrado.
Dando a entender que
era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra
exata.
Um dia, finalmente,
procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração”
vem do francês defenestration. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou
algo pela janela!
Acabou a minha
ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e
lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu
saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou
escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito
francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as
drogas, suprimido a tempo.
– Les defenestrations. Devem ser proibidas.
– Sim; monsieur le Ministre.
– São um escândalo
nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
– Sim, monsieur le Ministre.
– Com prédios de três,
quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime.
Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdit de defenestrer”. Os
transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês
de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs.
E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste
na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
– É esta estranha
vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
– Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala
Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista,
afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca
sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi
inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com
suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação
inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa
suite matrimonial no 17º andar.
– Querida…
– Mmmm?
– Há uma coisa que eu
preciso lhe dizer…
– Fala, amor.
– Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua
inocência, caminha para a cama:
– Estou pronta para
experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca o homem que acaba de cair
na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
– Fui defenestrado…
Alguém comenta:
– Coitado. E depois
ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma
estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta
crônica. Se ela sair é porque resisti.
E para quem gostou do quadro da demonstração da proposta de exercício, aí vai:
Vincent van Gogh, Quarto em Arles - 3ª versão (1889) |
Tanto a crônica quanto as imagens foram extraídas da internet.
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