Este poema foi publicado
pela primeira vez na revista Presença, número 39, em julho de 1933.
Escrito,
dizem – embora isso seja o mínimo da grandeza indiscutida deste poema –, num
dos escritórios onde trabalhava. “Na Rua dos Retroseiros, pela qual passam os
carros elétricos, esquina para a Rua da Prata, no canto fronteiro ao do
escritório (…) existia, ao tempo, uma Tabacaria, a “Havaneza dos Retroseiros” que
deu nome ao poema.”
Luís Pedro Moitinho de Almeida: Algumas Notas Biográficas Sobre Fernando Pessoa; Lisboa, 1959
Tabacaria
Álvaro de Campos, 15-1-1928
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte disso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do
mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que
saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua
cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os
pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo
das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas
paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça
de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse
a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse
para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as
coisas
Senão uma despedida, tornando-se
esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um
comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e
um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem
pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade
que devo
À Tabacaria do outro lado da rua,
como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho,
como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum,
talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras
da casa.
Fui até ao campo com grandes
propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à
outra.
Saio da janela, sento-me numa
cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não
sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta
coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma
coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em
sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem
sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas
conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos
malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza,
sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas
do mundo
Não estão nesta hora
gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e
lúcidas –
Sim, verdadeiramente altas e nobres
e lúcidas –,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem
acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o
conquistar
E não para quem sonha que pode
conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que
Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético
mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo
que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da
mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe
abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa
capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço
tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça
ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que
me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou
tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de
nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra
inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea
e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no
mundo senão chocolates,
Olha que as religiões todas não
ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a
mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de
prata, que é de fôlha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho
deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que
nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um
desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com
que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o
decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e
por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como
estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente
nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores,
gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito,
decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos
nossos pais,
Ou não sei quê moderno – não concebo
bem o quê –,
Tudo isso, seja o que for, que
sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma
nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios,
vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se
cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma
condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como
tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri.
E hoje não há um mendigo que eu não
inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as
chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem
estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade
de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como
um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto
remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o
fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho.
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o
dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no
vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar
que sou sublime.
Essência musical dos meus versos
inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa
que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da
Tabacaria de defronte,
Calcando os pés a consciência de
estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado
tropeça
Ou um capacho que os ciganos
roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à
porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça
mal voltada
E com o desconforto da alma
mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei
versos.
A certa altura morrerá a tabuleta
também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua
onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os
versos.
Morrerá depois o planeta girante em
que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros
sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como
versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a
outra,
Sempre o impossível tão estúpido
como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo
como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou
nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria
(para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de
repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido,
humano,
E vou tencionar escrever estes
versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em
escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação
de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e
competente,
A libertação de todas as
especulações
E a consciência de que a metafísica
é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder,
continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha
lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isso, levanto-me da cadeira.
Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo
troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem
metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à
porta.)
Como porum instinto divino o Esteves
voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem
esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
- Este poema foi transcrito do livro Fernando Pessoa – Obra Poética, 17ª reimpressão da 3ª edição, de 1969, lançada pela editora Nova Aguilar, no Rio de Janeiro, em 2001. A organização, a introdução e as notas do livro devemos à professora Maria Aliete Galhoz.
- Por respeito e reverência ao gênio - e não dando uma satisfação aos incomodados e aos entusiastas do novo acordo ortográfico - mantivemos a grafia original do Autor.
Que legal o trabalho que vcs estao fazendo aqui no blog!
ResponderExcluirGostei
Matheus
Obrigado, Matheus!
ExcluirUm grande abraço!