Victor
Costa
“Há quem não saiba
dizer a verdade.”
É
isso aí - Ana Carolina
Foto: Pâmela Lino
|
Caminhando
a passos largos, observo a lua esquecida no céu. Esta “melancolia celeste” me
aquieta a inquietude. Viro a última esquina antes de chegar a casa. Passo por
um vendedor de flores gesticulando muito, agachado, conversando com duas
crianças sentadas no meio-fio. Aparenta muita vivência pelo que diz e me faz
refletir. Encosto-me ao muro e hesito em entrar. Agora o que eu mais queria era
ser uma criança.
Retomo a
coragem, depois de alguns minutos. Entro na casa. Ela está na sala, recostada na janela, de pé,
alisando com as mãos seus cabelos brancos; o olhar pensante. Tento aproveitar
sua distração e de súbito me livrar deste infortúnio, falar logo o que
aconteceu e sair daqui correndo com todas as minhas forças, até as pernas não
aguentarem, para o lugar mais longe possível, onde eu não presencie o seu
sofrimento. Mas ela percebe minha presença e se volta para mim; anda,
arrastando lentamente os chinelos carcomidos na minha direção: “Pensei que cê num vinha… Já ia deitá… Cê qué um café meu fi? Cê tá estranho… Que aconteceu? Comé quele tá?”.
Eu abro a boca, insisto, tento dizer algo, qualquer coisa
que seja, um “oi”, um “adeus”, mas a voz não sai — e é melhor assim. Ela
estende os braços e antes que eles alcancem meu corpo e me envolvam, saio rapidamente,
cambaleando as pernas trêmulas e me agarro ao portão; vejo, do outro lado da
rua, o vendedor de flores.
Respiro ofegante. Tento abocanhar o ar que parece
inexistir. Eu espio o homem e ele deixa as crianças, pega seu cesto, me faz um
sinal, abaixa a cabeça e sai andando, como se me compreendesse mesmo sem saber
o que acontece — nem eu sei. Tenho vontade de falar com ele, me abrir, lhe contar
o que aconteceu naquele hospital, me expor completamente ao avesso para o crivo
da sua velhice.
Mas estapeio o rosto, com raiva, várias vezes, tentando
espantar o medo. Por que eu? Por que eu tenho que dar a notícia? Por quê?!
Com tanta gente na família… Ela retornou para a janela e está observando minha
covardia ali de cima, quieta. Entro na sala, novamente, pensando numa maneira
de iniciar a conversa: “Sabe, quando eu estava vindo para cá, eu vi um senhor
conversando com umas crianças, e…” Ela interrompe. “Fi, cê acredita em milagre?” pergunta. E me paralisa com seu olhar: uma mistura de
inocência, cansaço, esperança: como se enxergasse algo além de mim; além do que
sua pouca visão lhe permite.
Caio no sofá com um “nó” na garganta. Sufocado. Ela me
tortura com esse olhar e eu correspondo, exasperado, sem reação, indefeso a ele
e a mim. E aponto para a janela, disfarçando, tentando distraí-la. Mas ela não
se mexe. Continua me olhando. A pergunta ainda ecoa dentro de mim, me provocando,
querendo uma brecha para reverberar o que penso e o que sinto.
Como dizer que
a partir de hoje ela vai colocar apenas um
prato na mesa; que vai dormir sozinha;
que vai sobrar espaço na cama; que sua
vida agora é um monólogo; que no seu
vocabulário o pronome nós — ou nóis, como
ela diz — deve ser riscado, esquecido?
Como?!
Ela senta ao meu lado. Eu
fecho os olhos; abaixo a cabeça; cerro os dentes, tentando segurar o choro — inutilmente. Ela passa a mão quente, trêmula,
no meu rosto: “O irmão dele tá aí
fora… Vei de longe como ocê… Qué sabê do irmão fi… Me
conta comé quele ta! Pode falá!”.
Eu olho para ela e as lágrimas são tantas que eu já não
enxergo nada. Puxo o corpo magricelo dela, aperto-o com tanta força… E me
debruço no seu colo, molhando seu vestido fino. Ela, com dificuldade, segura
minha cabeça, guiando meus olhos aos seus; pronuncia algo em meio aos soluços:
“Fi, não precisa falá nada não. Eu já intendi.”
Premiado no 9º Concurso Francisco Beltrão de Literatura, 3º lugar na categoria conto.
Puxa! Que conto pungente! Muito belo. E maduro, vindo de um garoto tão jovem! Parabéns ao Victor.
ResponderExcluirElias